De Homme à Boy, via lavanda.
O que dois perfumes criados com 82 anos de distância tem a dizer sobre como homens usam perfumes.
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Estou usando um perfume em cada braço. Foram criados numa distância de mais de 80 anos um do outro. E tem muito em comum. De um lado tenho o primeiro perfume masculino, que imprime uma sensibilidade, delicadeza e atenção ao detalhe que está fácil de associar com feminilidade. O outro é um comentário ao desejo mais ou menos recente de perfumes sem gênero, lançado em conjunto com uma linha de maquiagem masculina. O primeiro é Pour un Homme (Caron), o segundo é Boy (Chanel).
Boy, de 2016, é o riff do perfumista Olivier Polge sobre Pour un Homme, que, posso apostar, papai usa desde sempre. Ele é filho de Jacques Polge, que foi perfumista da Chanel dos anos 1970 até 2015, quando Olivier assumiu a guarda. Ambos os perfumes são construídos do mesmo barro, com resultados diferentes — lavanda e cumarina, um cristal branco na forma de areia, com cheiro de baunilha e amêndoa, que é o principal odorante do cumaru (ou da fava tonka, se você lê lista de notas demais). O nome se refere à Boy Capel, grande amor de Chanel, que também nomeia uma linha de bolsas, sem dúvidas escolhido pela ambiguidade.
Pense que Pour um Homme é o primeiro perfume masculino e foi criado em — tambores — 1934. Isso se você confiar na historiografia dos franceses, que é excelente, mas puxa a brasa para a própria sardinha. Um homem deveria ter cheiro de limpo e arrumado até então, e nada mais. Portanto usava colônias, que são o sem gênero desde sempre. Até o simples ato de borrifar era exclusivo da mulher: colônia vinha num frasco sem aplicador, para verter o líquido nas mãos e espalhar com vigor no pescoço e nos braços. E borrifar já era moderno, imagine se perfumar tocando a tampa do frasco nos braços e no pescoço, como se faz com perfumes em alta concentração, que foi tudo que existiu por muito tempo, ao lado das colônias.
Fico pensando aqui. Se Pour un Homme autorizou os homens a circular por um universo tido como feminino e Boy refaz a promessa 82 anos depois, alguma coisa se perdeu nesse tempo. Mas nada disso quer dizer que homens não usavam perfumes.
Ernest Daltroff, perfumista, fundador da Caron, cria Pour un Homme na pista do que já tinha sido capturado pelo público masculino. É Fougère Royale (Houbigant, de 1882) que cria o emblema do que até hoje a gente entende como perfume masculino nesse mercadão de meu deus, graças a uma novidade bem mais quente que o ChatGPT: a química orgânica. É ela que possibilita a cumarina na paleta do perfumista. A combinação de lavanda, musgo de carvalho e cumarina é o osso dessa família com o nome do perfume fundador: família fougère ou dos aromáticos.
Era um lugar conhecido dos homens, já que lavanda fazia parte dos produtos para a barba e cabelo. Se a família é, em linhas gerais, de perfumes espaçosos, pontudos, tônicos, energéticos, com foco no herbal de lavanda e no amargo de musgo de carvalho, Pour un Homme amplifica na cumarina a delicadeza.
A lavanda é menos cânfora e mais anis. Na borrifada a sensação é úmida e luminosa do gerânio, e o conjunto faz pensar em chá. Parece desenhado num túnel de vento, não tem ponta para fora, nenhum elemento se destaca. A doçura da cumarina está lá o tempo todo, e é ela que ganha a frente depois de uma hora de uso. Tudo é calmo e controlado.
Boy usa os mesmos alicerces de lavanda e cumarina e joga complexidade no tema, deixando mais masculino e feminino ao mesmo tempo. O gerânio tem um parentesco olfativo na rosa e os dois se combinam num elemento sabonete, um aceno à jaula do cheiro de limpo. Tem uma nota animálica ali no meio, algo que me lembra cavalo, ela entra e sai de foco e isso está tirando o meu sono. Depois de uma boa hora de uso, Boy vira uma segunda pele lindíssima. Ela começa na cumarina, mas é feita mais suntuosa e profunda, com baunilha e um nada de sândalo.
Se a gente fosse continuar puxando o fio da lavanda + cumarina = ambiguidade de gênero, ia ter um nó entre essas duas pontas, que é Le Mâle (Jean-Paul Gaultier). Um arrasa quarteirão de 1994, doce, imenso, invasivo, que definiu o que era perfume para uma geração de homens gays — infelizmente o que está à venda hoje é um terror. Meu palpite nessa antropologia aqui, é que foi Brut (Fabergè), de 1964, um aromático cortante, de peito cabeludo, também invasivo, que fez o rumo se perder. Com seu slogan "se você tem qualquer dúvida sobre si, use outra coisa", Brut foi um tremendo sucesso.
Que texto bom de se ler!!! Parabens! 😊
Amo os seus textos e adoro os detalhes da história de como começou o perfume e assim por diante e faço uma viagem ao mundo da perfumaria pois sou apaixonada por estas gotas preciosas, parabéns Denis que além de conhecimento profundo da perfumaria é um excelente escritor, abraços!